Devido suas dimensões continentais e obstáculos naturais, o Brasil sempre teve uma grande necessidade de transporte aéreo. Entretanto, desde a fundação da Varig e da Cruzeiro do Sul há quase uma centena de anos, o mercado de aviação civil vem enfrentando diversos desafios, mas principalmente a concentração na mão de poucas companhias aéreas. Novas empresas entraram, foram compradas ou se fundiram, mas os céus brasileiros nunca deixaram de ser dominados por poucas empresas.

Hoje, esse oligopólio é representado por três companhias aéreas: Latam, Azul e Gol. De acordo com dados da Agência Nacional de Aviação Civil (Anac), elas contam com 39,6%, 31% e 28,8% de participação no mercado doméstico, respectivamente. Considerando o mercado historicamente concentrado, os primeiros sinais de uma possível fusão entre essas empresas podem causar considerável alarde. Nos últimos meses, conversas entre a Azul e a Gol levantaram suspeitas sobre um possível acordo comercial que vai muito além de apenas um codeshare. Tais especulações não são infundadas, visto que executivos das companhias reiteraram o interesse em negociações do gênero.

No mês de maio, em entrevista ao Inteligência Financeira, durante a 17ª LatAm CEO Conference do Itaú BBA, John Rodgerson, CEO da Azul, afirmou que apesar de não poder revelar muitos detalhes das negociações, acredita que uma fusão do tipo seria positiva para o mercado. “A união de duas empresas desse tamanho iria ajudar clientes, permitindo-os a ter mais acesso a muitos outros mercados. A Azul voa para mais de cem destinos que nenhuma outra empresa atende. Se pudermos ter outra companhia para conectar nossa malha aérea, seria muito vantajoso, ajudaria a captar dinheiro mais rápido e fomentaria a economia do País”, explica.

Vale dizer que as companhias aéreas latino-americanas não estão nas melhores condições, ainda mais em relação às demais regiões do globo. Um dos principais fatores creditados para tal cenário é a omissão e indiferença dos governos de toda a América Latina frente às dificuldades enfrentadas pelo setor durante a pandemia. Além da Gol, a Avianca, a Latam e o Grupo Aeromexico também entraram com recuperação judicial nos Estados Unidos em 2020.

Apesar do otimismo do CEO, ele salientou que as empresas estavam apenas conversando e eventualmente algo poderia ser concretizado, mas que é cedo demais para falar em fusão, o que exigiria um longo processo que não foi iniciado até então. Essa cautela se deve principalmente às dívidas de ambas as empresas e, em especial, ao processo de recuperação judicial da Gol nos Estados Unidos. “Não seria uma compra da Gol pela Azul, muito menos faríamos algo do tipo agora, considerando o atual estágio das empresas. Por enquanto, estamos apenas avaliando o que é possível no mercado”, reiterou.

Codeshare

Poucos dias após a publicação da entrevista com Rodgerson, a Azul e a Gol anunciaram um acordo de cooperação comercial, conectando as malhas aéreas domésticas não sobrepostas por meio de codeshare no final de junho. O acordo também abrange os programas de fidelidade, ou seja, membros do Azul Fidelidade e do Smiles podem escolher em qual desses programas desejam acumular pontos ao comprar trechos incluídos no acordo. A notícia veio acompanhada de depoimentos de executivos de ambas as partes.

“Esse acordo vai trazer enormes benefícios para os nossos clientes”, garante Abhi Shah, presidente da Azul. “Ambas as companhias têm uma história de desenvolvimento da aviação no Brasil, focadas na excelência no atendimento ao cliente. Com a malha altamente conectada da Azul servindo a maioria das cidades no Brasil e a forte presença da Gol nos principais mercados brasileiros, nossas ofertas complementares vão oferecer aos clientes a mais ampla gama de opções de viagem”, acrescenta.

“A Gol e a Azul sempre estiveram comprometidas em expandir o mercado de aviação brasileiro”, complementa Celso Ferrer, CEO da Gol. Este acordo de codeshare vai proporcionar aos clientes acesso a ainda mais opções para viajar pelo nosso País. A Gol já oferece mais de 60 acordos comerciais diferentes com muitas companhias aéreas parceiras globais e estamos ansiosos para expandir esse benefício dentro do Brasil também”, comemora.

Monopólio?

A parceria entre as duas gigantes do setor aéreo brasileiro levantou preocupações significativas sobre a competitividade, a qualidade dos serviços e os preços das passagens. Ainda que o acordo de codeshare seja drasticamente mais simples do que uma fusão de empresas, alguns especialistas avaliam que a movimentação não é tão favorável para os consumidores finais, o Turismo e a economia brasileira como um todo. Entre eles, está Emanuel Pessoa, advogado especializado em Direito Societário, Governança Corporativa, Contratos, Direito Internacional e Disputas Estratégicas.

“Teoricamente, o codeshare deveria ser bom para o consumidor, pois ele permite que o consumidor compre trechos em uma companhia aérea que são servidos por outra. Assim, hipoteticamente, haveria uma companhia aérea a mais competindo naqueles trechos. O grande problema é que o mercado aéreo brasileiro é extremamente concentrado na Latam, Gol e Azul, de modo que o Codeshare não terá como efeito prático o aumento de concorrência”, explica Pessoa.

Marcus Quintella, professor, doutor e diretor da FGV Transportes, argumenta que é imprescindível a atenta observação do caso por parte dos órgãos reguladores competentes, como a Anac e o Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade). “Em acordos como esse, teoricamente as empresas continuam atuando de forma independente, ou seja, se um cliente acessar um canal de vendas das duas empresas, elas devem apresentar bases de preços e ofertas diferentes”, afirma.

Contudo, se forem observados os mesmos valores e praticamente a mesma empresa atuando sob duas marcas, o que configura um cartel. “Parcerias como essas deveriam ter apenas o objetivo de estimular uma concorrência saudável e competitividade no setor, aumentar a capacidade de ocupação e expandir as rotas e ofertas aos consumidores. No entanto, é necessário um acompanhamento dos órgãos reguladores, pois existe o risco de haver a formação de um duopólio em um mercado já concentrado. Quem paga por isso é o consumidor, afetando o Turismo e a economia brasileira”, destaca Quintella.

Pessoa argumenta ainda que já há um sinal de preocupação neste caso de codeshare. “Embora, em tese, os acordos de codeshare não sejam sujeitos à aprovação prévia pelo Cade, posto que desde 2012 são considerados contratos associativos e a Resolução 17/2016 entende que esse tipo de contrato não precisa de notificação obrigatória, a situação é atípica em relação aos codeshares anteriores”, começa o advogado.

“No passado, os codeshares se relacionavam a companhias estrangeiras que dificilmente atuariam no mercado doméstico querendo aumentar a oferta de destinos e pontos de saída no Brasil, assim como acordos entre companhias maiores e regionais, sendo, portanto, de natureza complementar”, continua Pessoa. Esse último caso é comum nos Estados Unidos, que possui quatro grandes companhias, mas outras dez com participação significativa e diversos acordos entre si, sem configurar um oligopólio, segundo Quintella.

“No presente caso, em 15 de julho o Cade abriu procedimento para verificar se o codeshare da Gol e da Azul deveria ter sido notificado. Em que pese o entendimento existente, a situação de falta de concorrência no mercado brasileiro exige a análise concreta do acordo para se verificar se o caso se enquadra na previsão geral do Cade analisar atos de concentração atípicos e se o codeshare realmente é tipicamente associativo, sem a intenção de ferir a livre concorrência”, relata Pessoa.

Um grande precedente do setor aéreo no Brasil foi o codeshare da Trip com a Azul. Neste caso, o Cade verificou que a combinação teria 20% do mercado e determinou que o acordo somente seria aprovado se não houvesse cancelamento do codeshare entre a Latam e a Trip. “Frise-se que, na época, a regra legal era que acordos desse tipo precisavam ser notificados ao Cade. No caso de uma fusão, dada a relevância das empresas envolvidas no mercado nacional, a comunicação ao Cade é obrigatória e, caso não seja feita pelas empresas, seria por terceiros”, explica Pessoa.

No fim das contas, o advogado especialista acredita que o acordo representa sérios problemas para o consumidor, pois o preço da Azul é em média mais de 20% superior ao da Gol, ainda mais intensos no caso de uma fusão de fato. “Assim, o que temos como consequência mais provável seria o aumento do preço das passagens, o que levaria à melhora da saúde financeira da nova empresa. Isto teria impactos negativos no turismo e nos custos de negócios que envolvem viagens e fretes aéreos”, detalha Pessoa.

Fusão?

Após o anúncio do codeshare entre a Azul e a Gol, uma reportagem do jornal Valor Econômico apontou o acordo como um passo para uma possível fusão, citando bastidores da negociação entre as duas empresas. A matéria afirmava que, em vez de a Azul comprar a Gol, a primeira estaria cogitando uma combinação de negócios com o Grupo Abra, visando a formação de uma nova empresa da qual o controlador da Gol seria acionista. O grupo passaria suas ações da Gol para a Azul em troca de uma participação na nova companhia aérea combinada.

Em resposta aos questionamentos elencados pela Bolsa de Valores de São Paulo (B3), a Gol divulgou um comunicado reiterando que seus executivos buscam conduzir um processo de busca de alternativas financeiras para a empresa. Contudo, a companhia salienta que o processo não foi iniciado e que “nenhuma negociação com a intenção de concluir uma transação foi iniciada pela companhia com qualquer terceiro”. Na ocasião, a Gol admitiu que o Grupo Abra mantinha conversas com a Azul, mas que um eventual negócio entre as empresas não seria necessariamente vinculado à Gol no Brasil.

De acordo com Quintella, fusões e aquisições são comuns, mas obedecem uma lógica patrimonialista, que beneficia sempre a rentabilidade do capital investido. “Isso ocorre em qualquer setor da economia e existem muitos exemplos péssimos no mundo, que resultaram na deterioração da oferta de mercado. O movimento do capital para se tornar monopolista não é interessante para o mercado. A qualidade do serviço deve ser observada, o que inclui a segurança operacional, aumentos tarifários e o trabalho de manutenção, que é imprescindível no setor aéreo.”

Entre os casos mais recentes, está a aliança estratégica entre a Delta e a Latam, anunciada em setembro de 2019, no qual a companhia aérea americana adquiriu uma participação de 20% da empresa chilena. A aliança inclui acordos de codeshare, permitindo que os passageiros acumulem e resgatem milhas em ambas as companhias. Em 2020, as empresas assinaram um acordo de joint venture transamericano e passaram a operar de forma combinada, mas sem de fato concluir um processo de fusão permanente, formando uma entidade jurídica.

Em um caso mais concreto de fusão, está a compra de 41% das ações da ITA Airways por parte do Grupo Lufthansa, que foi aprovada no mês de julho pela Comissão da União Europeia e está prevista para ser concluída no final deste ano. O acordo prevê compartilhamento de voos por codeshare, adesão à Star Alliance, participação no programa de fidelidade Miles & More, processos conjuntos para operações em solo e de voo, além de acesso às plataformas de reservas do grupo. A comparação, porém, não é justa, visto que são companhias da Europa, que é composta por vários países menores e muito interligados por diversos outros meios de transporte.

Caso uma fusão entre a Gol e a Azul realmente viesse a acontecer, a companhia resultante dominaria mais de 60% do mercado doméstico, o que levaria, obrigatoriamente, à uma intervenção do Cade, segundo Pessoa. “Ainda mais se considerarmos que a nova empresa, junto com a Latam, teria domínio de muito mais do que 80% do mercado. Assim, as regras concorrenciais iriam determinar que a fusão fosse vetada. Dificilmente, ante a fortíssima concentração do mercado aéreo brasileiro, teríamos a situação de aprovação com ressalvas”, argumenta o advogado especialista.

Ainda segundo Pessoa, a fusão resultaria em uma melhoria imediata nas finanças da companhia resultante por conta do aumento do preço das passagens aéreas. De imediato, voos em rotas com sobreposição seriam cancelados e os clientes teriam mais opções de passagens, a custo de menor concorrência e, consequentemente, maiores preços. “Isto seria maléfico para o consumidor, que já se vê pagando preços muito elevados no mercado doméstico em comparação com o praticado em outros países. Haveria também um forte desestímulo à entrada de novos jogadores diante da posição quase monopolista que seria alcançada”, explica Pessoa.

Tal movimentação, segundo Quintella, seria muito preocupante e precisaria ser analisada com bastante atenção, pois iria totalmente de encontro com os interesses públicos e a economia nacional. “Afinal, a livre concorrência está presente na Constituição Federal, é um princípio fundamental da nossa democracia. Os abusos do poder econômico, portanto, não são bem vindos”, pontua o diretor.

Perspectivas

Enquanto o mercado aguarda novidades acerca das negociações entre a Gol e a Azul, há muitas outras questões pendentes no setor aéreo nacional, diretamente relacionadas com a questão da competitividade do mercado. Entre elas, o preço do combustível, a falta de crédito e a judicialização. “Aumentar a competitividade é fundamental, pois um ambiente favorável com empresas saudáveis financeiramente é extremamente positivo para o mercado e os consumidores finais. São fatores que dependem muito da recuperação, inclusive da própria Gol em sua recuperação judicial”, opina Quintella.

Na avaliação de Pessoa, a competitividade do setor depende da redução de obstáculos regulatórios para pequenas e médias empresas. “É necessário derrubar barreiras de entrada, para que novas empresas possam surgir e operar. As dificuldades regulatórias são imensas, fora os custos da insegurança jurídica, com o Brasil sendo o país com o maior número de processos contra companhias aéreas (em que pese a responsabilidade delas nisso)”, salienta.

De acordo com Quintella, o Governo Federal poderia remover todos os empecilhos e abrir mais o mercado para empresas internacionais que queiram vir para o mercado doméstico. “Houveram diversas tentativas, mas nunca conseguiram colocar essa ideia na prática. Todavia, é fundamental avaliar se isso seria realmente interessante para a soberania nacional e a economia do País”, reflete o diretor.

“O mercado precisa se expandir e o Brasil precisa se tornar atraente e seguro, para que o Turismo se desenvolva e a economia brasileira cresça”, continua Quintella. “Com isso, teremos o aumento do tráfego aéreo, que é muito sensível a todos esses fatores que impactam na competitividade do setor. Afinal, nossa infraestrutura aeroportuária vem se desenvolvendo fortemente, com aeroportos modernizados, mas totalmente abaixo de suas capacidades e prontos para suportar uma demanda maior de visitantes”, finaliza.