Você já deve ter ouvido este termo, principalmente porque, agora, o conceito está cada vez mais presente no mercado. Seja em eventos do segmento, painéis e workshops, nas agências de viagens ou, ainda, estampado nas revistas. A questão é que o afroturismo chegou para ficar.
Caso você ainda não esteja familiarizado com o conceito – que não é novidade no mercado – aqui vai uma breve explicação: o afroturismo é uma forma de turismo que valoriza e promove a história, cultura, patrimônio e legado das comunidades negras, especialmente aquelas que têm matrizes africanas. Pode-se dizer que o afroturismo, que já foi chamado por muito tempo de turismo étnico, é uma vertente do turismo cultural.
Ele ajuda a promover a justiça social, a igualdade e a inclusão de comunidades que foram, historicamente, marginalizadas. Através da capacidade de preservar a história e o patrimônio das comunidades negras, o afroturismo age ainda como uma ferramenta aliada na proteção da cultura e do meio ambiente. Isso é particularmente importante para as comunidades afrodescendentes, que muitas vezes tiveram suas culturas e patrimônios apagados – ou ignorados – pela história dominante.
Isso tudo, claro, sem contar com as oportunidades que o setor oferece aos turistas. Sendo o Brasil um país riquíssimo em diversidades, você já parou para pensar na quantidade de experiências únicas, autônomas e significativas ofertadas pelo afroturismo? É possível conhecer, vivenciar e aprender sobre a cultura africana enquanto desfruta de experiências memoráveis.
O Turismo é uma importante fonte de receita. No Brasil, as atividades do setor foram responsáveis pelo crescimento de 2,9% do Produto Interno Bruto (PIB) em 2022, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). E o afroturismo ajuda a garantir que as comunidades negras também possam se beneficiar economicamente do setor. Além de ser uma oportunidade para educar as pessoas sobre a história e a cultura afro, promovendo a compreensão e o respeito pelas diferentes culturas do mundo.
Aliás, você sabia que o Brasil é o país com a maior população negra fora da África? Também somos a segunda maior população negra do mundo. Com cerca de 56% de brasileiros negros, perdemos apenas para a Nigéria. Dados como esse reforçam a importância da preservação de uma cultura que está intrinsecamente ligada à nossa.
Foi pensando nisso que a Bahia desenvolveu o projeto Salvador Capital Afro. O estado é um dos mais negros do país, com 76,3% da população se autodeclarando negra ou parda, de acordo com dados de 2020 divulgados pelo IBGE.
Capital negra da América Latina
Desde 2019, a Prefeitura Municipal de Salvador criou uma política pública para o desenvolvimento do Plano do Turismo Afro de Salvador. Feito a várias mãos, o plano é fruto da parceria entre a Secretaria de Cultura e Turismo, por meio do Prodetur Salvador, com a Secretaria da Reparação.
Salvador Capital Afro (SCA) é uma ação presente neste plano. Simone Costa, especialista em Turismo do Prodetur Salvador e gerente do Núcleo de Ações Turísticas, explicou o objetivo do projeto.
“É um movimento de fortalecimento e projeção da cultura afro, criado para posicionar Salvador como um dos mais importantes destinos no mundo para o Afroturismo”, pontuou Simone para o Brasilturis sobre o movimento que envolve, além da infraestrutura e logística para o turismo na perspectiva do negro, apoio ao trabalho dos afroempreendedores locais.
Sendo a capital com maior quantidade de afrodescendentes fora do continente africano, Salvador tem mais de 80% da população negra, de acordo com o IBGE. Por este motivo recebeu, em 2011, o título de Capital Negra da América Latina durante o 21° Encontro Ibero-americano de Afrodescendentes.
O SCA é resultado de um processo de escuta ativa de 658 atores do trade turístico e cultural negro locais. Foram ouvidos guias de turismo, músicos, dançarinos, capoeiristas, operadoras e agências de viagem, baianas de acarajé, afroempreendedores da indústria criativa local, empresários e influenciadores em geral. A ação combina estratégias de fortalecimento econômico e promoção nacional e internacional do destino.
“Os investimentos direcionados não atendiam a verdadeira vocação turística desta cidade, que é o afroturismo. Nossa identidade pulsa, conecta, é diversa e não há sazonalidade. As possibilidades são inúmeras durante todo o ano, propiciando maior permanência do turista, mais consumos e, consequentemente, mais ganhos econômicos, gerando inclusão e geração de renda para a população negra”, frisou a turismóloga.
“Nossa identidade pulsa, conecta, é diversa e não há sazonalidade.”
Simone Costa
Para otimizar as experiências e empreendimentos, o movimento desenvolveu o Guia de Afroturismo da cidade, um documento com roteiros turísticos afrocentrados, que saem do lugar-comum e mostram uma cidade protagonizada pelos próprios habitantes, reconectando os turistas com a ancestralidade africana. No guia há indicações de roteiros gastronômicos, experiências e passeios cujo valores ficam entre R$ 30 e R$ 200. Ser acessível a diversos públicos faz parte da premissa do SCA.
Segundo Simone, o coletivo é o segredo para o sucesso do projeto que nasceu para reparar e incluir a população negra na economia do Turismo da capital baiana. “Isso só tem legitimidade se for construído com eles e para eles. Assim, a curadoria, seja de conteúdo, empreendimentos, roteiros, ou outros, é desenvolvida coletivamente por profissionais negros.”
Aliado ao guia, o SCA desenvolve, ainda, ações de fomento ao afroempreendedorismo no setor. Afrobiz é uma plataforma que conecta a indústria criativa afro de Salvador com consumidores, mentores e investidores do Brasil e do mundo, abrindo portas para possíveis rodadas de negócios. A plataforma possui hoje 1.958 afroempreendedores cadastrados, sendo 2.404 produtos e 1.400 serviços.
Nas quatro rodadas de negócios já realizadas, sendo duas nacionais e duas internacionais, foram gerados R$ 3,8 milhões em intenções de negócios entre compradores e fornecedores, além de 28 negócios selecionados para participar do Programa de Qualificação para Exportação, promovido pela Federação das Indústrias do Estado da Bahia (FIEB).
Já o Afroestima oferece um plano educacional gratuito, que pode ser híbrido ou virtual, de capacitação e de mentoria, com conteúdo digital e físico para afroempreendedores do afroturismo. Já foram certificadas mais de mil pessoas pelo projeto. Shirlei de Souza, desenhista e aluna da primeira turma do Afroestima, contou o que sentiu após a qualificação. “Eu me tornei uma pessoa melhor, mais preparada para enfrentar meu trabalho de maneira mais assertiva. Ajudou muito a lidar com o público no dia a dia, a inovar no negócio”, comentou.
“Investir em projetos que enfatizem a negritude dentro do Turismo, além de uma questão de ênfase na identidade, é também um processo de reparação através da inserção desta população no ciclo econômico do setor, reconhecendo-os como verdadeiros protagonistas da nossa história e da nossa cultura”, conclui Simone.
Desenvolvendo potências do Afroturismo
Fundada em 2016, a Diáspora Black é uma startup que agrega serviços e produtos focados na cultura negra. “Nascemos com a missão de promover os patrimônios materiais e imateriais da população negra. Potencializamos isso dentro de uma plataforma que reúne experiências, empreendimentos, hospedagens e empresas focadas na cultura negra”, explicou Carlos Humberto da Silva, cofundador e CEO da traveltech.
Dentro da grande lista de contribuições que a empresa já proporcionou ao setor, Silva citou a primeira vez em que o termo foi utilizado publicamente como uma agenda corporativa. “No final de 2017, convidamos nossos parceiros para uma agenda de network. Desse encontro saiu a proposta para um fórum maior, que oferecesse mais representatividade. Foi estabelecida ali a primeira edição do Fórum de Afroturismo”, lembrou o gestor, que comentou também sobre o aumento do número de participantes com a implementação do nome. ”Fizemos este evento no auditório da nossa sede e a previsão era receber cerca de 70 representantes de empresas. Recebemos 180 organizações. Ali percebemos que havia um mercado que estava sedento de oportunidades para deslanchar.”
“Durante muito tempo o mercado utilizou o termo ‘étnico’ para o turismo afrocentrado. E esse termo retrata todas as etnias presentes em nosso território. O que é muito interessante e importante, mas não aborda com a devida importância nenhuma das etnias envolvidas”, ressaltou ainda o executivo sobre a importância do foco na pauta quando o assunto são minorias.
Hoje, além dos anúncios de roteiros, experiências e hospedagens na plataforma, a Diáspora ainda promove cursos online e treinamentos para que empresas e instituições desenvolvam roteiros afrocentrados. Este último serviço é prestado através do Laboratório de Roteiros Criativos, projeto iniciado em 2022. Investindo no crescimento e desenvolvimento do setor, a empresa ainda produz mapeamentos e diagnósticos do mercado.
“Nessa perspectiva, somos a maior organização especializada na promoção do afrofuturismo. Alcançamos 18 países e 145 cidades, com uma comunidade superior a 40 mil pessoas engajadas com o nosso propósito. Também inauguramos, no ano passado, uma sede nos EUA”, contou Silva.
O grande alcance da startup favorece o diálogo com diferentes organismos internacionais, como é o caso da parceria firmada com o Banco Interamericano de Desenvolvimento (Bid) na realização do projeto Salvador Capital Afro.
Diante da importante atuação da Diáspora Black, a aprovação nacional e internacional tem sido cada vez maior. A empresa recebeu, por dois anos consecutivos, o reconhecimento da Organização Mundial do Turismo (OMT); além do destaque recebido como terceira melhor startup de turismo na edição nacional do Desafio de Inovação do Turismo, realizado pela Wakalua, OMT e Ministério do Turismo (Mtur), em 2021.
Durante a WTM deste ano, realizada no Expo Center Norte (SP) entre os dias 3 e 5 de abril, a startup venceu em segundo lugar na categoria “Melhores soluções para a promoção da diversidade e inclusão” do Prêmio de Turismo Responsável 2023 da América Latina. Foram 66 inscrições e 17 vencedores no prêmio criado para reconhecer os avanços, abrir espaço para a replicação de cases de sucesso e a construção conjunta de um mundo mais sustentável. “Toda essa atuação no mercado nos coloca como autoridade na promoção do afroturismo”, pontuou o CEO.
Essa autoridade proporcionou, no fim de março, uma parceria entre a Diáspora Black e Agência Brasileira de Promoção Internacional do Turismo (Embratur) para a promoção do afroturismo no mercado internacional. Juntas, as instituições vão definir um calendário de ações que terão a valorização da nossa cultura como prioridade. Silva adiantou que está sendo criada uma gerência, dentro da atual estrutura da Embratur, para tratar do afroturismo. Essa frente pode dar ênfase à participação em grandes feiras internacionais, o que contribui na atração de investimentos para o setor. A criação de uma possível data comemorativa do segmento turístico também pode estar em vista.
“Para atrair novos visitantes é importante potencializar aquilo que temos como diferencial. E um dos nossos grandes diferenciais está inteiramente ligado à herança que os povos indígenas e negros trouxeram para o país. Dentro do território nacional há uma riqueza de cultura que diverge do turismo de paisagens, e é essa imagem que queremos potencializar”, adiantou o CEO.
Quilombo Cultural de São Luís
Com o objetivo de fortalecer ainda mais a cultura ludovicense, a Secretaria Municipal de Turismo desenvolveu o roteiro turístico Quilombo Cultural de São Luís. Lançado em setembro do ano passado, o trajeto enaltece a cultura dos bairros Liberdade, Diamante, Fé em Deus e Camboa, que juntos formam a área do maior quilombo urbano da América Latina.
O roteiro, que está em fase piloto, passa por dez atrativos turísticos: Mercado Municipal da Liberdade, Terreiro Ylé Ashé Oba Yzôo, Bloco Tradicional Os Indomáveis Show, Bumba Meu Boi da Floresta, Terreiro Ilé Ashé Ogum Sogbô, Bloco Afro Abiyeyé Maylô, Tambor de Crioula Maracrioula, Bumba Meu Boi de Leonardo, Produtora Novo Quilombo – Reggae e o Bloco Afro Netos de Nanã.
As paradas foram escolhidas a dedo, através de uma curadoria que representa e enaltece a cultura do estado. Os barracões do Bumba Meu Boi, por exemplo, são espaços onde acontecem a produção das vestimentas, reuniões e ensaios dos grupos que compõem uma das maiores manifestações culturais do Maranhão, sendo detentora, inclusive, do título de Patrimônio Cultural da Humanidade, concedido pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco).
Sem falar nas casas de reggae – um dos ritmos mais escutados no estado -, e casas de Tambor de Crioula, manifestação que tem o título de Patrimônio Cultural do Brasil concedido pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan).
Atualmente, a visitação é realizada conforme demanda de turistas que queiram conhecer o roteiro. “A pessoa pode procurar diretamente os atrativos turísticos ou uma das diversas agências de receptivos presentes na cidade e agendar a visita”, explicou Saulo Santos, secretário de Turismo de São Luís. Como forma de avivar o roteiro, a Setur oferece – em algumas edições -, atrações culturais como uma amostra do que o viajante vai encontrar em cada uma das paradas.
Um banho de cheiro marcou a primeira edição da ação promovida pela Setur, ainda em setembro de 2022. Em novembro, mês da Consciência Negra, a ação promoveu um cortejo até o Terreiro Ilé Ashé Ogum Sogbô, onde os participantes receberam a benção de banho para acompanhar o ritual do Tambor de Mina. Agora, em maio, está prevista a terceira edição do roteiro, com um cortejo acompanhando o Bloco Tradicional, uma oficina promovida pelo Barracão do Bumba Meu Boi da Floresta e apresentação cultural do Tambor de Crioula.
“A partir de junho, as edições dessa ação irão acontecer uma vez ao mês, possivelmente aos domingos. Vamos sair do centro histórico de São Luís e seguir em direção ao Quilombo Cultural”, adiantou Santos.
Para facilitar o acesso do público e promover mais segurança no percurso que já recebeu mais de 200 pessoas desde o seu lançamento, foi realizada a melhoria na iluminação pública dos bairros contemplados, assim como a instalação de placas de identificação em cada um dos locais que compõem o roteiro. A Avenida Camboa e a Rua Gregório de Matos também receberam placas de sinalização.
No campo dos recursos humanos também houve investimento. Desde o lançamento do atrativo turístico, capacitações e oficinas estão sendo realizadas para os representantes dos estabelecimentos que fazem parte do roteiro, assim como para a comunidade em geral.
Mesmo tendo pouco tempo em atividade, apenas oito meses, o roteiro já foi finalista e campeão do 10º Prêmio Braztoa de Sustentabilidade. O projeto levou para São Luís o troféu na categoria Parceiros Institucionais da premiação promovida pela Associação Brasileira das Operadoras de Turismo (Braztoa), em dezembro de 2022.
“O prêmio foi um divisor de águas, principalmente por se tratar de algo muito importante para o turismo nacional, que fez uma avaliação em relação a todo o trabalho que vem sendo desenvolvido na cidade de São Luís. Nos deu muito mais ânimo para continuar a desenvolver o projeto”, contou Santos.
Presença confirmada nos eventos
A equidade racial foi uma das pautas sociais que mais têm recebido destaque nos eventos voltados ao Turismo neste ano. Colocar este tema em pauta é, de uma forma clara, um posicionamento do que o trade está planejando para o futuro: um crescimento sustentável e focado no desenvolvimento das potências nacionais.
Em fevereiro, por exemplo, a 18ª edição do Latin America Community for Travel and Events Experience (Lacte), um dos maiores eventos do setor de viagens e eventos corporativos do Brasil, trouxe como causa social o combate ao racismo.
Sob o mote “Enfrentemos todos o racismo. Se você não enfrenta, sua omissão permite”, a Associação Latino Americana de Gestão de Eventos e Viagens Corporativas (Alagev) realizou uma pesquisa com o setor, a fim de mapear pessoas negras no mercado. E, dos 800 formulários enviados, a organizadora do evento recebeu um número extremamente baixo de respostas.
Motivada em quebrar esta resistência em falar sobre o assunto, além do tema estabelecido para a edição, a associação montou ainda um lounge com representantes do Movimento Black Money (MBM). O espaço contou com a participação de empreendedores negros que oferecem produtos e serviços para viagens e eventos corporativos.
Assim como no Lacte, participantes da 10ª World Travel Market (WTM) Latin America também tiveram um contato mais próximo com representantes do afroturismo – com direito até a um painel sobre o tema. Cristiane Santos, Guilherme Soares Dias, Nilzete dos Santos e Heitor Salatiel, grandes nomes que são referências dentro do setor, comandaram o painel “O Afroturismo e o agente de viagens: o que eu preciso saber e aprender?”.
Durante a reunião, os palestrantes destacaram que o segmento ainda precisa progredir em sua compreensão sobre o que é o afroturismo, e em como se tornar mais inclusivo e respeitoso em relação a esse tema.
Além deste momento, uma agenda inédita ocorreu também durante o evento: o encontro entre representantes de 15 instituições que promovem o afroturismo no País e Marcelo Freixo, presidente da Embratur, para uma agenda sobre o atual cenário do setor no Brasil.
Como resultado deste encontro, que foi organizado por Carlos Humberto Silva, Freixo assumiu o compromisso de firmar parceria com as organizações para promover internacionalmente o setor – o que já ocorreu. “Que este seja um momento de virada para que o afroturismo seja tratado como um motor do desenvolvimento do Turismo no Brasil”, concluiu Silva.
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