No mundo corporativo, conceitos como ética, transparência e governança se tornaram indispensáveis, mas a forma como são aplicados varia conforme o contexto cultural. Essa foi a premissa da palestra do antropólogo Michel Alcoforado, realizada no primeiro dia do Lacte 20, evento realizado pela Alagev que reúne profissionais do setor de eventos e viagens corporativas em São Paulo. Com um olhar antropológico sobre o tema, Alcoforado ressaltou que a ética não é uma régua universal, mas sim um reflexo das tensões sociais e culturais de cada época.

“A todo o tempo, você está pensando se está fazendo o certo ou o errado. Esse jogo é culpa da cultura. Ela nada mais é do que a lente que a gente usa para enxergar o mundo”, afirmou o antropólogo. Segundo ele, essa percepção influencia desde a escolha de hotéis e passagens até a comunicação com clientes. “Nesse mundo em transformação, nossas lentes estão cada vez mais desfocadas, mas precisamos delas para interpretar os contextos, para termos clareza do que estamos fazendo e por que estamos fazendo.”

A era da “permacrise” e a falta de confiança

Alcoforado também destacou durante o Lacte 20 o que chamou de “permacrise” – um cenário de múltiplas crises simultâneas, sem começo nem fim previsíveis. Esse ambiente de instabilidade alimenta a desconfiança, o que impacta diretamente o mundo dos negócios. “O principal ativo que qualquer profissional vai ter que lidar é a confiança. Ela que vai permitir que as relações sejam verdadeiras. Estamos vivendo uma crise de confiança pautada em uma completa desconfiança entre os entes”, explicou.

A consequência direta dessa desconfiança é o aumento da burocracia e da judicialização dos negócios. “Quando temos desconfiança, burocratizamos. Precisamos de papéis, comprovantes e documentos para provar o que foi dito e acordado. O custo da justiça e da burocratização aumentam os preços do nosso pacote e do nosso trabalho”, analisou o especialista.

ESG e a construção da reputação

O debate sobre ética também passa pelo ESG (Environmental, Social and Governance), conceito que vem ganhando cada vez mais relevância. Para Alcoforado, a governança (o “G” do ESG) se tornou um fator essencial para a reputação das empresas. “Reputação é o principal ativo que temos que ter nas dinâmicas corporativas em qualquer espaço. Ela não surge do nada, mas sim de um conjunto de práticas fundamentais dentro desse movimento”, apontou.

No Brasil, essa construção enfrenta um desafio adicional. “Nossa reputação precisa ser dobrada, porque nossa desconfiança é muito maior do que em outros lugares. A gente acredita no negócio, mas desconfia dos líderes”, afirmou. Diante disso, transparência e fortalecimento dos processos são elementos essenciais.

Discussões sobre perigo do “jeitinho” no Lacte 20

Outro ponto de destaque da palestra foi a cultura do “jeitinho brasileiro”, um fenômeno ambíguo que se equilibra entre a flexibilidade e a quebra de regras. “O jeitinho trabalha no meio e no entre, é um crime, mas não é; é errado, mas não é; não pode, mas para você pode. Ele acontece quando, diante da regra, olhamos mais para as necessidades de alguém”, disse Alcoforado.

Para ele, esse comportamento gera incerteza e compromete a transparência nos negócios. “Se sua relação é de CNPJ, marque a formalidade que ela pede. Não pessoalize coisas impessoais. Quando há jeitinho, não geramos transparência e ficamos na dúvida de coisas que não precisamos ter dúvidas. Estamos colocando em jogo aquilo que é nosso maior ativo, que é nossa reputação.”

A solução para evitar esse tipo de dilema passa pela comunicação clara e objetiva. “Se você abre uma exceção para cada cliente, você não consegue criar uma regra. Não dá para construir um ambiente de trabalho saudável sem comunicação. É via comunicação que se constrói confiança. Pior do que falar demais é não falar. Os líderes têm nove vezes mais chances de serem criticados por comunicar menos do que por comunicar demais.”

A conclusão de Alcoforado foi direta: “O mais importante é jamais esquecer que regra é regra, sem exceções.”