Viajar de avião pode ser uma experiência animadora para muitos, mas para outros, pode ser considerado um verdadeiro desafio. O medo de voar, alimentado por turbulências inesperadas e aumento de notícias acerca de acidentes, pode transformar o que deveria ser um momento empolgante em um gatilho para a ansiedade. E, convenhamos, os acontecimentos dos últimos meses não ajudam a aliviar essa preocupação.
Entre janeiro e março de 2024, o Brasil registrou 12 ocorrências aeronáuticas na aviação civil, que resultaram em 17 mortes, de acordo com dados do Centro de Investigação e Prevenção de Acidentes Aeronáuticos (Cenipa). Esses números contribuem para o receio, especialmente quando se observa que, em 2024, a taxa de acidentes fatais aumentou em relação a 2023, segundo o Relatório Anual de Segurança da Aviação, da Associação do Transporte Aéreo Internacional (Iata).
De acordo com o documento, a taxa de todos os acidentes em 2024 foi de 1,13 por milhão de voos – o que representa um acidente a cada 880 mil voos, superior à média de cinco anos (1,25), mas inferior ao índice de 1,09 registrado em 2023. Sete acidentes fatais ocorreram entre 40,6 milhões de voos, um número superior ao único acidente fatal de 2023 e à média de cinco anos – que foi de cinco acidentes fatais. O total de fatalidades a bordo também cresceu, chegando a 244 em 2024, frente a 72 em 2023 e a uma média de cinco anos de 144.
Entretanto, a aviação comercial continua sendo uma das formas de transporte mais seguras do mundo. A cada dia, melhorias nos projetos das aeronaves, nos procedimentos de segurança e no treinamento de tripulações têm tornado os voos mais seguros. A tecnologia de ponta também tem garantido mais chances de sobrevivência, caso um acidente ocorra.
“Houve 40,6 milhões de voos em 2024, com sete acidentes fatais. Comparado à média de dez anos atrás, houve uma evolução significativa na segurança da aviação. Cada fatalidade representa uma perda inestimável, e continuamos trabalhando para tornar a aviação ainda mais segura”, afirmou Willie Walsh, diretor geral da Iata, no lançamento do relatório anual de segurança da entidade.
Rígidos padrões
Afinal, quão seguros estamos ao embarcar em uma aeronave? As companhias aéreas seguem padrões rígidos de manutenção? E as autoridades, como a Agência Nacional de Aviação Civil (Anac), garantem que esses protocolos sejam seguidos à risca?
Apesar dos temores, a aviação comercial é um dos meios de transporte mais fiscalizados do mundo, com normas rigorosas e um histórico que ainda aponta o avião como a opção mais segura para longas distâncias. Mas o que dizem os números? Como funciona essa fiscalização? Para entender melhor esses indicadores e os impactos para passageiros e companhias aéreas, o Brasilturis conversou com Hilton Rayol, especialista em Segurança de Voo e Direito Aeronáutico, que destaca os fatores por trás desses números, as medidas adotadas para aumentar a segurança e as expectativas para os próximos anos no transporte aéreo.
“O aumento na taxa de acidentes de 2024 pode assustar à primeira vista, mas voar continua sendo extremamente seguro. Quando olhamos para a média dos últimos anos, percebemos que a aviação nunca foi tão confiável quanto hoje. Aeronaves mais avançadas, treinamentos rigorosos e aprimoramentos tecnológicos garantem um alto nível de segurança”, afirma Rayol, destacando que variações anuais são normais e que a aviação aprende com cada voo. “Mesmo com esse leve aumento, a probabilidade de um acidente aéreo ainda é infinitamente menor do que a de um acidente em outras formas de transporte. A segurança da aviação é baseada em aprendizado contínuo, e cada evento é analisado para evitar que se repita”, frisou.
Segundo o especialista, a maioria dos acidentes na aviação comercial está relacionada a falhas humanas. “Erros de julgamento, falhas de comunicação, má gestão da fadiga e má interpretação de procedimentos são responsáveis por grande parte dos incidentes. Por isso, o treinamento contínuo e o gerenciamento de recursos da tripulação (CRM) são fundamentais”, alerta.
Além disso, falhas técnicas, condições meteorológicas adversas e riscos operacionais, como colisões na pista ou aproximações desestabilizadas, também estão entre os fatores de risco. Por isso, a manutenção preventiva e as inspeções regulares são essenciais para garantir a segurança dos voos.
“Essas revisões identificam falhas antes que elas se tornem um problema. Inspeções regulares reduzem a chance de falhas mecânicas inesperadas e garantem que todos os sistemas da aeronave estejam operando dentro dos padrões exigidos”, destaca Rayol.
“Aviação segura é aquela que não improvisa. Inspeção, prevenção e planejamento são as bases da segurança operacional, reforça Rayol.”
A aviação está mais segura hoje do que há dez anos, e isso se deve a diversos fatores. “A tecnologia embarcada nas aeronaves evoluiu, a cultura de segurança foi fortalecida e os treinamentos de pilotos foram aprimorados, especialmente com o uso de simuladores de última geração. Além disso, os regulamentos estão mais rigorosos, garantindo padrões elevados de operação”, explica o consultor.
O profissional também explicou que as companhias aéreas tratam a segurança como uma cultura, não apenas como um departamento ou conjunto de regras. “As empresas precisam investir em um ambiente onde a segurança seja prioridade, incentivando que erros sejam reportados sem medo de retaliação e promovendo treinamentos contínuos. O Sistema de Gerenciamento da Segurança Operacional (SGSO) também é essencial para antecipar riscos em vez de apenas reagir a incidentes”, explica.
Além disso, programas rigorosos de manutenção e treinamento de tripulações são fundamentais para manter a confiabilidade das operações. A manutenção das aeronaves no Brasil segue rigorosamente os padrões internacionais, sendo regulamentada pela Agência Nacional de Aviação Civil (Anac), que adota as diretrizes da Organização da Aviação Civil Internacional (OACI). “O Brasil mantém um nível de segurança compatível com os padrões internacionais, com oficinas certificadas, auditorias frequentes e profissionais altamente qualificados”, garante o especialista.
Novas tecnologias, como inteligência artificial (IA) e automação, também estão otimizando a segurança na aviação. “A IA permite a análise de grandes volumes de dados para identificar padrões e prever possíveis falhas antes que elas ocorram. Isso possibilita uma manutenção preditiva, reduzindo atrasos e cancelamentos”, afirma Rayol.
Em conjunto, sistemas automatizados auxiliam na operação das aeronaves, reduzindo a carga de trabalho dos pilotos e minimizando o risco de erro humano. Afinal, com o aumento do tráfego aéreo, cresce a complexidade operacional, o que pode elevar o risco de incidentes. Para isso, investimento em infraestrutura aeroportuária, tecnologia de controle de tráfego aéreo e treinamentos avançados para tripulações possibilitam mitigar tal risco.
A sucessão de acertos e aprendizados é o que faz a aviação moderna, conforme Rayol: “Cada grande acidente trouxe mudanças importantes, como melhorias nos protocolos de comunicação, reforço no gerenciamento de fadiga e padronização de treinamentos. Segurança na aviação não é apenas operacional, é sistêmica”. Para ele, o maior legado da aviação é transformar erros em lições e implementá-las em camadas adicionais de proteção. “A aviação não esquece seus erros. Ela os documenta, os estuda e os transforma em novas barreiras de segurança para evitar que se repitam”, conclui.
Verdade ou mito?
Apesar dos avanços e dos protocolos rígidos, ainda existem dúvidas e mitos sobre o que torna um voo mais seguro. Um dos mais comuns é a ideia de que há horários específicos em que voar seria menos arriscado. Rayol esclarece que não há fundamento técnico para essa ideia.
“Segurança aérea não tem hora marcada. O nível de segurança é o mesmo, seja de manhã, à tarde ou à noite, pois as operações seguem um planejamento rigoroso e um controle de qualidade padronizado”, afirma. Mas o consultor reconhece, ainda assim, que voar durante o dia pode trazer uma sensação psicológica maior de conforto para alguns passageiros.
Outro ponto de preocupação para muitos viajantes é a turbulência. Embora desconfortável, ela não representa, na maioria dos casos, uma ameaça direta à segurança estrutural do avião. “Os aviões são certificados para suportar turbulências típicas. O maior risco está dentro da cabine, especialmente quando passageiros e tripulantes não utilizam o cinto de segurança”, alerta Rayol, ressaltando que para garantir total segurança num voo é preciso que o passageiro siga as instruções repassadas pela tripulação.
A busca pelo assento mais seguro é outra questão frequente. Embora estatísticas indiquem pequenas diferenças na taxa de sobrevivência dependendo da localização, Rayol ressalta que essas diferenças são mínimas e condicionais, variando de acordo com inúmeros fatores específicos do acidente – como tipo de impacto, condições climáticas, terreno, velocidade e dinâmica envolvida.
Rayol aproveita o momento para lembrar: segurança na aviação é preventiva, não corretiva. “A verdadeira segurança ocorre na prevenção rigorosa de acidentes, com manutenção eficiente, tripulação capacitada e procedimentos de segurança rigorosamente cumpridos. Não há um ‘assento milagroso’. Em termos práticos, o lugar mais seguro do avião é aquele onde você senta com consciência e tranquilidade, seguindo todas as orientações de segurança passadas pela equipe de comissários”, ressalta.
Certificações no Brasil
Para operar no Brasil, uma empresa aérea passa por um rigoroso processo de certificação conduzido pela Anac. Esse procedimento segue padrões internacionais e garante que a companhia atenda a todos os requisitos técnicos, operacionais e de segurança.
O primeiro passo é a obtenção da certificação operacional, que exige a apresentação de documentos, manuais e programas de segurança. A Anac também realiza inspeções nas bases operacionais e de manutenção, além de voos de avaliação para garantir a conformidade com as normas vigentes.
Após essa fase, a empresa deve comprovar o cumprimento de exigências jurídicas e fiscais para receber a outorga que permite a operação de voos comerciais. Esse processo segue a Resolução Anac nº 377/2016 e não pode sofrer interferências que dificultem a entrada de novos concorrentes no mercado, conforme determina a Lei de Liberdade Econômica (Lei nº 13.874/2019).
Mesmo após a certificação, a Anac mantém um monitoramento contínuo das operações, fiscalizando a segurança dos voos e o cumprimento dos direitos dos passageiros. Caso sejam identificadas falhas, a agência pode aplicar sanções, que variam de multas à suspensão ou cassação da certificação da companhia, como ocorreu recentemente com a Voepass.
Fiscalização na prática
A Voepass enfrenta um dos momentos mais desafiadores de sua história. Sete meses após o trágico acidente com o voo 2283, ocorrido em 9 de agosto de 2024, a companhia aérea teve suas operações suspensas pela Anac. A decisão, anunciada em 11 de março deste ano, foi tomada em caráter cautelar devido a não conformidades identificadas nos sistemas de gestão da empresa, impactando diretamente sua capacidade de garantir a segurança operacional exigida pelos regulamentos do setor.
Foi realizada uma série de auditorias conduzidas pela Anac, intensificadas após o acidente com o ATR 72-500 em Vinhedo (SP), que resultou na morte de 58 passageiros. A partir de então, a agência implementou uma fiscalização assistida, com monitoramento constante das bases operacionais e de manutenção da empresa.
Mesmo com exigências feitas em outubro de 2024, incluindo a redução da malha aérea, aumento do tempo de solo para manutenção e troca de administradores, a companhia não conseguiu demonstrar evolução suficiente para sanar as irregularidades apontadas. Em fevereiro de 2025, uma nova auditoria revelou a degradação da eficiência do sistema de gestão da empresa, reincidência de falhas anteriormente consideradas resolvidas e falta de efetividade nas ações corretivas adotadas.
Diante desse cenário, a Anac determinou a paralisação total das operações da Voepass, incluindo a suspensão da venda de bilhetes e o cancelamento de voos já programados, até que a empresa comprove a retomada dos padrões de segurança exigidos. Passageiros impactados pela suspensão devem buscar a própria Voepass ou as agências responsáveis pela venda das passagens para reembolso ou reacomodação.
Além disso, a Anac notificou a Latam para atender os clientes afetados, já que ambas as companhias mantêm um acordo de codeshare. A Voepass, que atualmente possui seis aeronaves e atende 15 destinos regulares, além de dois contratos de fretamento, agora depende da implementação eficaz das exigências regulatórias para retomar suas operações.
A suspensão da Voepass reforça a importância do cumprimento rigoroso das normas de segurança na aviação e da supervisão contínua por parte das autoridades reguladoras. O desdobramento desse caso será determinante para o futuro da companhia e para a confiança do setor aéreo brasileiro.
Vale esclarecer que a investigação sobre o acidente com o voo 2283 da Voepass segue em andamento. Apesar do relatório preliminar do Centro de Investigação e Prevenção de Acidentes Aeronáuticos (Cenipa) ter trazido algumas análises, ainda há pontos a serem esclarecidos, como os fatores que levaram à perda de sustentação da aeronave. Especialistas apontam que condições climáticas, como formação de gelo nas asas, podem ter contribuído, mas reforçam que um acidente é raramente causado por um único fator. A análise das caixas pretas e demais evidências será fundamental para entender o que realmente aconteceu.