Marcelo Oliveira é uma das principais referências jurídicas do turismo nacional. Com mais de 20 anos de atuação e reconhecido pelo trabalho técnico em defesa do agenciamento, o profissional é sócio do CMO Advogados, é assessor jurídico da Abav Nacional, AbavSP | Aviesp, Abracorp e Belta, com atuação em todas as regiões do Brasil. Fundador do perfil @turisprudencia no Instagram, também representa a Abav Nacional junto à World Travel Agents Association Alliance (WTAAA) e ao Forum Latinoamericano de Turismo (Folatur), além de integrar fóruns internacionais e comissões da OAB-SP.
Nesta entrevista exclusiva ao Brasilturis, Oliveira destaca os principais desafios jurídicos do setor, o impacto das recentes quebras de operadoras, como a Viagens Promo, alternativas legislativas ao redor do mundo e a urgência de um ambiente regulatório mais justo para as agências de viagens brasileiras.
Os agentes de viagens já enfrentam uma fragilidade histórica no Brasil. Na sua visão, quais fatores estruturais contribuíram para isso ao longo dos anos?
Quando conectamos o agenciamento de viagens com o que ele faz, o entendimento imediato é que estamos falando de uma cadeia de fornecimento. Nunca temos um cenário isolado, em que o agente controla todos os serviços. O agenciamento representa uma aproximação e distribuição de serviços, cuja esmagadora maioria dos produtos não pertence à agência. Ela não possui assentos em aviões, quartos de hotel, veículos, ingressos, etc. Não é dona dos serviços que comercializa, mas sim uma ponte entre o consumidor final e os fornecedores.
A posição da atividade, por vezes, a coloca como o elo mais frágil da cadeia — ela não detém, não possui e não consegue fiscalizar tudo aquilo que vai agenciar e distribuir. Ela se insere em um contexto no qual precisa confiar que os fornecedores cumprirão suas obrigações e que os órgãos competentes farão a devida fiscalização. A agência, nesse cenário, é a responsável por reunir e ofertar produtos, esperando que todo o resto da cadeia esteja funcionando de forma regular e segura.
Essa dependência estrutural cria um ambiente de constante vulnerabilidade. O agente de viagens assume a frente do relacionamento com o consumidor, mas muitas vezes depende de terceiros para que tudo ocorra dentro do esperado. Essa é a grande problemática estrutural que fragiliza o agenciamento, tanto no Brasil quanto em outros países.
Com as recentes quebras de empresas como 123 Milhas, Hurb, Vou Pra e Viagens Promo, que tipo de impacto jurídico mais tem afetado as agências de viagens?
O impacto jurídico frontal e imediato está na credibilidade do agenciamento. Infelizmente, essas quebras levantaram questionamentos sobre a boa-fé e a solidez do setor como um todo. É fundamental separar o joio do trigo, pois estamos falando de empresas com modelos de negócio muito diferentes do agenciamento tradicional.
A 123 Milhas e o Hurb operavam com estratégias comerciais arriscadas, com uso de milhas, preços fora do mercado, ofertas de datas flexíveis e promessas de produtos sem qualquer garantia de entrega. São vendas futuras sem segurança contratual real. Isso distorce o papel das agências sérias, que seguem práticas consolidadas. A Vou Pra atuava de maneira direta com o consumidor final, com grande volume de bilhetes e ingressos, mas também fora do padrão de intermediação clássico.
Já a Viagens Promo é um caso distinto. Trata-se de um modelo tradicional, B2B, no qual a agência de viagens atua como parceira na distribuição. Quando uma operadora assim quebra, o impacto atinge diretamente o coração do agenciamento de viagens. É aqui que precisamos de atenção total, inclusive com o apoio do governo. É necessário reequilibrar a responsabilidade civil do agenciamento, para que ele não seja penalizado por situações nas quais não teve culpa alguma.
Para esse caso, o Sistema Abav disponibilizou suporte jurídico gratuito e contínuo aos associados, com orientação para defesa em processos administrativos e judiciais. Algumas agências, inclusive, bancaram valores que a operadora deixou de pagar e agora estão sendo auxiliadas a buscar ressarcimento.
Esse episódio mostra a importância das associações de classe. Elas não existem apenas para momentos de crise, mas atuam continuamente pela valorização e proteção da atividade. A luta pela revisão da Lei Geral do Turismo, por exemplo, começou há muitos anos. Os textos já passaram pelo Congresso e ainda aguardam sanção presidencial.
Também precisamos que o mercado esteja dentro dessas entidades. Não adianta cobrar de fora. A força das representações cresce com a participação ativa dos profissionais. Quando a cobrança vem de dentro, o poder público escuta com mais atenção. É isso que fortalece a voz do setor.
A responsabilização solidária ainda é um dos maiores entraves para a segurança jurídica dos agentes. Por que esse ponto é tão sensível e o que mudaria na prática caso a legislação reconhecesse o agente apenas como intermediador?
A responsabilidade solidária é um grande problema porque ignora os limites da atuação do agente. Se houver uma revisão da responsabilidade civil, poderemos delimitar com clareza o que é de responsabilidade do agenciamento. A agência precisa responder pelo que ela faz e tem autonomia para fazer, mas não pode ser responsabilizada por aquilo que não controla ou sequer conhece.
Por exemplo, ela não pode alterar políticas de cancelamento de uma companhia aérea, nem avaliar a saúde financeira de um fornecedor. Ela não tem acesso a esse tipo de informação. Mesmo assim, frequentemente é responsabilizada judicialmente por todo o pacote adquirido, como se tivesse controle sobre todos os seus componentes.
Atualmente, o entendimento jurídico muitas vezes coloca o agente como garantidor do todo, como se fosse uma grande corporação. Isso é um equívoco. Se a legislação reconhecesse seu papel de intermediador, teríamos um alinhamento mais justo. A agência responderia pelo que efetivamente faz — intermediar, aproximar, distribuir — e não por falhas alheias.
Há modelos internacionais que podem servir de inspiração para o Brasil?
Sim. Compartilhamos com o Governo Federal bons exemplos de fora. Em Portugal e na província de Quebec, no Canadá, há fundos garantidores criados por norma legal, com a participação de governo e setor privado.
Em Quebec, qualquer problema com uma viagem adquirida por agência pode ser levado a esse fundo, que avalia a responsabilidade e busca o ressarcimento junto à parte realmente culpada. Já em Portugal, o fundo é financiado anualmente pelas empresas participantes, com supervisão da associação local. Esses mecanismos oferecem segurança ao consumidor e ao agente, e só são possíveis com envolvimento governamental.
Quais dispositivos atuais poderiam ser melhor aplicados para proteger os agentes de viagens?
A nova Lei Geral do Turismo, aprovada em setembro, traz uma importante inovação ao reforçar que a agência de viagens atua como intermediadora. Mesmo em casos de fretamentos e bloqueios, a lei deixa claro que o papel do agente é aproximar e distribuir serviços, não sendo o detentor deles.
Infelizmente, o artigo que previa a nova responsabilidade civil foi vetado pela presidência, o que mantém o mercado exposto. Muitas agências são condenadas por pacotes que apenas intermediaram — e, em muitos casos, sem sequer transitar com mais de 10% do valor total da operação, sendo responsabilizadas por 100% do valor. Essa distorção precisa ser corrigida.
Enquanto a legislação não for ajustada, precisamos explorar ao máximo os dispositivos já existentes e, principalmente, investir na atuação técnica no Judiciário. Defender o agente judicialmente exige técnica, estratégia e profundo conhecimento do agenciamento, pois a leitura automática da Justiça ainda é de solidariedade.
Com base nas principais dúvidas que surgem nos encontros do “Momento Jurídico”, quais são as falhas mais comuns na atuação jurídica das agências atualmente?
Apesar das dificuldades, o setor cresce. O número de profissionais e empresas no Cadastur aumenta, o que mostra o interesse e a relevância da atividade, mas esse crescimento traz desafios.
Temos, por um lado, agências experientes tentando se adaptar às mudanças. Por outro, novos entrantes, muitas vezes com pouco preparo. Isso gera falhas jurídicas básicas. Uma delas é a má qualidade da documentação — contratos copiados de outros segmentos, cláusulas que não condizem com o serviço prestado. Já vi contrato de excursão terrestre com cláusulas de cruzeiro marítimo.
Outra falha comum está na regularidade fiscal e tributária. Muitos agentes têm problemas com a Receita ou com documentos essenciais por simples desconhecimento. São fragilidades que poderiam ser evitadas com capacitação jurídica e organização empresarial.
Há alguma medida que os agentes de viagens podem adotar individualmente para mitigar riscos e aumentar a segurança jurídica?
A primeira é ter atenção no atendimento: passar todas as informações ao cliente antes da contratação — valores, inclusões, regras de alteração e cancelamento, documentos exigidos.
A segunda é ter contratos próprios, claros e bem estruturados. A agência precisa mostrar qual é seu papel na operação. Não pode depender apenas dos documentos dos fornecedores. A terceira é cuidar da regularidade fiscal: garantir que a empresa esteja em dia com obrigações legais, tributos e registros.
Quais caminhos jurídicos e regulatórios seriam ideais para construir um ambiente mais equilibrado e justo?
Precisamos de um ambiente regulatório mais equilibrado e conscientização. É necessário reconhecer as diferenças dentro da indústria do Turismo. Não dá para tratar uma companhia aérea e uma agência MEI com os mesmos critérios de responsabilidade. Isso é insanidade.
Cada elo deve responder pelo que faz, dentro de suas capacidades e autonomia. A atuação das representações de classe precisa focar em conscientizar o governo e os órgãos reguladores para essa diferenciação. Só assim alcançaremos justiça e equilíbrio nas decisões que envolvem o setor.
Qual recado deixaria para os agentes de viagens que estão preocupados com essa insegurança jurídica?
Meu recado é de valorização e incentivo. Os agentes de viagens fazem parte de uma profissão nobre e necessária, essencial no Turismo. As companhias aéreas, os hotéis, os parques e as operadoras dependem do agenciamento para distribuir seus serviços.
Reconhecendo essa importância, os agentes devem continuar acreditando no seu papel. Devem se organizar, buscar apoio, investir em capacitação e se unir às entidades representativas. As batalhas jurídicas e institucionais estão em curso, e o resultado virá.
O mais importante é fazer tudo certo — porque o agente deve responder pelo que faz —, mas lutar para não ser responsabilizado por aquilo que está fora de seu controle. A estrada já está sendo percorrida. O equilíbrio é possível e vai chegar.