Desde o ano passado, um dos assuntos mais discutidos pelas lideranças do trade é o retorno da exigência do visto brasileiro para visitantes estrangeiros. A partir do dia 10 de abril de 2024, turistas provenientes dos Estados Unidos, Canadá e Austrália precisarão de visto para entrar no Brasil. A medida, anunciada pelo governo federal em maio de 2023, representa uma mudança de postura do País, que havia dispensado a exigência de visto para esses países em 2019. Para obter uma compreensão mais profunda dessa questão, no entanto, é fundamental ter familiaridade com os antecedentes históricos e geopolíticos.

Analisando o contexto internacional, é notável uma gradual movimentação para a abertura de fronteiras ao longo dos últimos anos, em especial entre blocos regionais. Em 2015, destinos ao redor do mundo ainda exigiam, em média, que aproximadamente dois terços da população mundial obtivessem um visto tradicional antes da partida, segundo dados da Organização Mundial de Turismo (OMT). Mesmo assim, o grau de liberdade para viajar no mundo todo já era o mais alto que já esteve e segue aumentando consideravelmente, de acordo com o Passport Index.

A OMT aponta ainda que, no geral, as economias emergentes continuam a ser mais abertas do que as economias avançadas. É o caso do Brasil, que isenta visto para turistas de 102 países, 52% do total. Para fins de comparação, os EUA isentam visto de apenas 5 países, exigindo Autorização Eletrônica de Viagem (eTA) de 41 nacionalidades. Ao mesmo tempo, cidadãos brasileiros possuem um dos passaportes mais poderosos, podendo entrar sem visto em 115 países, fazer visto no local em 49 nações, precisando de visto para apenas 34 países.

É importante considerar também a facilidade de obtenção de visto. De acordo com a OMT, 54 destinos facilitaram significativamente o processo de visto para cidadãos de 30 ou mais países entre 2010 e 2015, alterando suas políticas de visto de “visto tradicional” para “eVisa”, “visto na chegada” ou “nenhum visto necessário”. Nos últimos anos, esse fenômeno ficou cada vez mais comum, inclusive no Brasil, cujo governo afirma estar empenhado em tornar o processo ágil e prático, evitando a necessidade de deslocamento do turista até a Embaixada.

Reciprocidade diplomática

A exigência e isenção de vistos para diferentes nacionalidades dependem de diversos fatores e acordos. Historicamente, o Brasil adota o princípio da “reciprocidade diplomática” com outras nações, o que implica essencialmente que, se um país exige vistos para a entrada de brasileiros, o inverso também deve acontecer. No caso dos EUA, Canadá e Austrália, os países exigem o documento dos turistas brasileiros e, portanto, o Brasil sempre cobrou visto de visitantes dessas nacionalidades – pelo menos até 2019.

Durante o governo Bolsonaro, a exigência de vistos de turismo para americanos, canadenses e australianos foi temporariamente revogada. “A decisão foi tomada sob o argumento de que a não necessidade de seguir todos os trâmites burocráticos exigidos para um processo de visto brasileiro faria com que a quantidade de turistas vindos destes países aumentasse”, afirma Marcelo Gondim, advogado especializado em imigração nos Estados Unidos e fundador do Gondim Law Corp.

Vale dizer que, recentemente, a Turquia também deixou de exigir visto para os três países. No entanto, diferentemente do Brasil, nenhum dos três países exigem visto para cidadãos turcos.

“A medida foi dada de graça. Sem reciprocidade. Brasileiros continuam precisando de visto para viajar para esses países”, relembra Mauro Vieira, ministro de Relações Exteriores. “No início deste governo, por instrução do presidente Lula, restabelecemos os vistos. Chamamos esses países para negociar. O Japão aceitou e negociamos. Os outros alegaram que não era possível pela legislação de cada um deles”, conta. 

Olhando somente pelo aspecto diplomático, Gondim avalia que faz todo o sentido manter o sistema de reciprocidade entre países. “No entanto, este é um sistema antigo, adotado em uma época em que as nações se relacionavam substancialmente diferente do que fazem hoje em um mundo cada vez mais globalizado”, pontua o advogado. “Portanto, se ampliarmos a análise da questão da reciprocidade para além da tradição diplomática e pensarmos nas diferentes situações econômicas que cada país apresenta atualmente, talvez seja a hora de repensar uma nova forma de relacionamentos bilaterais”, avalia.

No entendimento do atual governo, contudo, não houve grandes ganhos econômicos com esta medida e, portanto, não veem motivos para manter a isenção. Vale salientar que a avaliação dos impactos dessa determinação é consideravelmente desafiadora, dado que a revogação foi implementada em 2019, ano antecedente à eclosão da pandemia da covid-19, provocando impactos sem precedentes no setor turístico em escala global.

“Hoje, a maior dificuldade que a indústria brasileira do Turismo encontra em atrair visitantes estrangeiros é a questão da imagem da segurança pública do Brasil no exterior, com muitas pessoas desistindo de viajar para cidades como Rio de Janeiro (RJ), São Paulo (SP) ou Salvador (BA) temendo algum tipo de violência”, afirma Gondim. “O retorno à exigência, contudo, acrescenta mais um obstáculo aos esforços de trazer mais turistas estrangeiros”, contrapõe o advogado.

Apesar da volta da obrigatoriedade do visto, Celso Sabino, ministro do Turismo, afirma que o governo federal, por meio do Ministério das Relações Exteriores, está trabalhando para tornar esse processo o mais ágil possível. “Por sinal, turistas norte-americanos, australianos e canadenses que desejam conhecer o Brasil já podem solicitar o visto eletrônico, o chamado e-visa. A Embratur e o Ministério do Turismo atuam na produção e na distribuição de informações do e-visa a todos os operadores turísticos e companhias aéreas que vendem, nesses três países, passagens e pacotes para o Brasil”, explica.

“Estamos em constante contato com nossos parceiros comerciais nesses três países para demonstrar como é fácil e rápido emitir o visto”, enfatiza Marcelo Freixo, presidente da Embratur. “Estamos nos comunicando com as empresas de cruzeiros, companhias aéreas, grandes operadores e agências de viagens, para que a informação seja ampla e chegue para quem já comprou sua viagem e quem planeja visitar o Brasil. Estamos em contato permanente também com o Itamaraty e a empresa que opera a emissão do visto digital, para que essa transição ocorra com tranquilidade e segurança”, destaca.

Adiamento

No início de janeiro, em resposta a pedidos do trade turístico, o governo federal publicou o decreto nº 11.875, prorrogando o início da exigência de vistos para o dia 10 de abril. Além de evitar impactos negativos na vinda de estrangeiros durante a alta temporada, a medida também teve como objetivo a conclusão do processo de implementação do sistema de vistos eletrônicos, que visa dar praticidade e celeridade à outorga dos vistos. Vale lembrar que os vistos concedidos têm prazo de até dez anos com validade para múltiplas entradas no país. 

Em 3 de janeiro, do total de quase 30 mil pedidos de vistos eletrônicos recebidos, 42% haviam apresentado imprecisões no preenchimento de solicitação e na documentação encaminhada. Segundo nota emitida pelo Ministério das Relações Exteriores, “problemas técnicos relativos ao pagamento virtual foram solucionados e foi acelerado o tempo de análise dos requerimentos com maior número de funcionários dedicados. Foram realizados, ainda, treinamentos adicionais da equipe de análise”. 

Com essas mudanças, a intenção é simplificar as exigências para o visto eletrônico, sendo necessário apenas o preenchimento dos dados do viajante, fazer o “upload” de uma foto e de documento de viagem válido, além do pagamento das taxas consulares correspondentes. Pelo site é possível pagar o valor de US$ 80 referente ao visto, e US$ 0,90 pela taxa de serviço, com cartões de crédito e débito Mastercard ou Visa.

Os dados mostram que os Estados Unidos são o segundo maior emissor de turistas para o Brasil, seguidos pela Argentina. Nos primeiros dez meses de 2023, o Brasil recebeu 530,7 mil turistas norte-americanos, representando 11% do total de visitantes. No mesmo período, foram registrados 66,3 mil turistas canadenses (16º maior emissor) e 38,5 mil australianos (17º maior emissor).

Questionado pelo Brasilturis Jornal se haveria o interesse em manter as portas abertas para uma possível negociação, o ministério respondeu positivamente: “Em atenção aos interesses dos cidadãos brasileiros, o governo seguirá pronto a negociar, com os três países já mencionados, acordos de isenção de vistos baseados nos princípios da reciprocidade e da igualdade entre os Estados, a exemplo do que ocorreu em maio de 2023 com o Japão”.

Vale destacar que o país asiático estava na lista que voltaria a precisar de visto para entrar no Brasil e, por meio de um acordo histórico, cidadãos de ambos os países estão isentos de visto em viagens com duração de até 90 dias. A medida entrou em vigor em setembro de 2023 e tem validade inicial de três anos. Em janeiro deste ano, um novo passo foi dado na relação entre as nações e, agora, autoridades consulares dos dois países podem conceder vistos de até dez anos de validade, dobrando o prazo máximo de concessão atual. A iniciativa facilita as viagens, incentiva a promoção de negócios e impulsiona o Turismo entre os países. 

Repercussão no trade turístico

Preocupados com uma possível redução de turistas estrangeiros durante o período do Carnaval, considerado de alta temporada no Brasil, várias entidades ligadas ao Turismo emitiram notas repercutindo o adiamento da exigência. Alfredo Lopes, presidente do Sindicato Patronal dos Meios de Hospedagem da capital do Rio de Janeiro (HotéisRIO), comemorou a prorrogação. “Sempre considerei a exigência de vistos uma visão unilateral desalinhada com a atual demanda do Turismo nacional e fluminense”, pontuou. 

O gestor ainda frisou esperar que o Governo Federal invista na promoção e captação de turistas estrangeiros, principalmente nos mercados que têm enorme potencial de resposta, como os Estados Unidos. “Reconhecemos que este governo, em um trabalho consistente que vem sendo realizado pela Embratur, caminha positivamente neste sentido, mas ainda estamos longe do potencial de captação do mercado internacional. Por isso consideramos mais do que acertada a decisão do adiamento”, declarou Lopes.

Mice prevê redução no apelo do país

Menor participação de buyers internacionais em feiras e eventos, diminuição na geração de emprego e renda nos setores da cadeia turística, assim como a redução de apelo do País aos contratantes. De acordo com Ibrahim Tahtouh, presidente da Câmara Nacional de Arbitragem da Academia Brasileira de Eventos e Turismo (CNA EvTu) e diretor da Academia Brasileira de Eventos e Turismo, estes são alguns dos possíveis reflexos da medida que exige visto, ainda que de forma eletrônica, aos canadenses, estadunidenses e australianos.

Para o gestor, o Brasil terá uma queda na geração de emprego e renda em setores ligados à cadeia turística, isso ocorrerá porque turistas corporativos gastam mais que viajantes de lazer. “Uma pessoa que está viajando a lazer vai gastar o mínimo no destino, pois está comprometida com hospedagem, passagem e outros gastos. No máximo, uma viagem de lazer envolve duas a dez profissões. No Mice temos mais de 400 profissionais envolvidos em 53 indústrias do segmento. O turista corporativo pode até passar menos tempo no destino, mas movimenta muito mais a economia”, destaca.

Vale ressaltar que, ao longo dos últimos anos, o Turismo foi um dos setores que mais colaborou com a geração de novos empregos e para o reaproveitamento da mão de obra de outros setores. Segundo a Organização Mundial do Turismo (OMT), o setor é responsável por um em cada nove empregos gerados no mundo.

Ibrahim lembrou ainda de uma ação que realizou com a marca holandesa Philips, promovendo uma viagem para a cidade do Recife, em Pernambuco, que foi colonizada por holandeses e guarda muito de sua história até os dias atuais. “Fizemos esta viagem no início dos anos 2000 e todo ano me perguntam se haverá outra nesse formato. O visto do pessoal não era um problema. Se houvesse a exigência, essa experiência poderia ser diferente para eles. É preciso ter um apelo para atrair estes visitantes”, pontua.

A solução, sob o ponto de vista de Tahtouh, é criar uma forma de controle de entrada e saída do País, sem a necessidade de exigir um visto, mesmo que de maneira eletrônica. “É muito relevante para o crescimento do destino que esse visitante seja bem-vindo. Não dá para problematizar a entrada dele”, pontua.

Para Toni Sando, presidente da Unedestinos e São Paulo Convention & Visitors Bureau, a isenção do visto torna o Brasil mais competitivo na captação de eventos internacionais. E, com a exigência em vigor, o executivo afirma que irá simplificar, na medida do possível, a entrada de turistas no País. “Trabalhamos com o cenário de adequação dos critérios de exigência, desburocratizando alguns documentos solicitados e facilitando a vida dos nossos visitantes”,  disse. 

Sando também acredita que o governo federal deva construir um levantamento acerca da entrada de visitantes desses países durante o período de isenção de visto, para que as tomadas de decisões sejam estruturadas em cima dele.